A Mostra Internacional de Filmes Domésticos é um festival de cinema inédito que tem sua primeira edição realizada de forma online e gratuita, de 24 a 28 de março de 2021 na plataforma TodesPlay (www.todesplay.com.br/). O objetivo é lançar luz sobre essas obras e compartilhar esses preciosos registros com um público mais amplo. Ao longo de 5 dias, serão exibidos 94 filmes de diferentes épocas, países e formatos, realizados entre os anos 1900 até início dos anos 1990.

 

Mas o que são filmes domésticos? São filmes que registram atividades familiares, férias, viagens, passeios ou eventos especiais, destinados, sobretudo, à esfera privada, para serem vistos entre a família e os amigos. São materiais compostos por imagens cotidianas, mas que podem (e devem) ser considerados um importante registro cultural digno de preservação, pesquisa e difusão. 

 

A tecnologia das câmeras portáteis utilizadas, cujo propósito era ser um equipamento mais acessível aos não iniciados nas técnicas da cinematografia, também possibilitou que amadores com maiores ambições artísticas pudessem se arriscar na criação de obras narrativas e experimentar a linguagem cinematográfica.  Até meados dos anos 1970, antes da popularização do vídeo para uso caseiro, os filmes domésticos eram feitos em película cinematográfica, em formatos como o 8 mm, Super-8, 9,5 mm e 16 mm. Estes filmes correspondem à maior quantidade de imagens em movimento produzidas ao longo do século XX e documentam, de maneira singular, aspectos normalmente negligenciados da vida durante essa época, seja pelo cinema comercial ou pelo cinema institucional mais estabelecido. 

 

A programação conta com filmes brasileiros e de países como Chile, Espanha, Estados Unidos, Itália e Peru. Os materiais brasileiros são oriundos de arquivos como a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual da Universidade Federal Fluminense; dos acervos de Alice de Andrade e de Mario Carneiro, e de coleções particulares como as de Eduardo Zepka e Robinson Roberto. Os filmes estrangeiros vieram de arquivos como a Biblioteca do Congresso dos EUA, o Museu Nacional de História e Cultura Afro-americana do Instituto Smithsonian, a Cineteca Nacional do Chile, da coleção particular do italiano Giovanni Torri, e das coleções de projetos independentes como os americanos Center for Home Movies e Prelinger Archives, Cinelimite, o chileno Filmoteca Chilena, o espanhol Memorias Celuloides, e os peruanos Cine Amateur Peruano e Cine Íntimo.

 

Os filmes exploram diversas perspectivas e estão organizados em programas temáticos: Família, Pessoas e lugares, Local e mundial, Artistas brasileiros, Artista brasileiro em foco, Curadoria convidada, Personalidades e Arquivos em foco. 

 

O programa Família reúne obras que retratam o âmbito familiar e seus diversos rituais, com um olhar privilegiado para as celebrações, o lazer e a infância. O programa Pessoas e lugares enfoca a relação entre as pessoas, os lugares onde foram criadas e as culturas onde estão inseridas, apresentando manifestações religiosas, culturais e costumes de determinados grupos sociais. Já o programa Local e mundial agrupa filmes de experiências de deslocamento sob diferentes aspectos, movimentações cotidianas que podem revelar abordagens inusitadas de situações rotineiras, e registros comuns que acabam por testemunhar grandes eventos e transformações. 

 

No programa Artistas brasileiros, exibiremos quatro filmes que registram artistas de distintas esferas de atuação. Veremos a filmagem que o arquiteto e urbanista Lúcio Costa fez da família Melo Franco de Andrade, na virada para os anos 1940; imagens domésticas raras do pai do cineasta capixaba Orlando Bomfim, netto, o advogado, jornalista e militante do Partido Comunista Brasileiro Orlando Bomfim Jr., desaparecido durante a ditadura militar brasileira; imagens de Caetano Veloso logo depois de voltar do exílio, em 1972, feitas por Robinson Roberto; e uma obra inédita de Paula Gaitán, criada exclusivamente para a Mostra a partir dos registros domésticos de sua temporada em Sintra, Portugal, em 1981. O programa Artista brasileiro em foco será dedicado ao pintor, gravador, arquiteto, diretor de fotografia e cineasta Mario Carneiro. Exibiremos a coleção completa de seus filmes domésticos, realizados a partir de 1953, quando ganhou uma câmera Paillard Bolex 16 mm de presente no seu aniversário de 23 anos. 

 

A curadoria convidada desta primeira edição está a cargo da pesquisadora e curadora Lila Foster, que se dedica aos estudos sobre o cinema doméstico no Brasil. A programação realizada por ela foca nos sentimentos intensos e por vezes contraditórios da vida familiar, apresentando uma seleção de filmes realizados com e a partir de imagens e da estética do filme doméstico. 

 

Muito antes do advento das redes sociais, personalidades já registravam seu cotidiano e o ambiente familiar. Com Sigmund Freud não foi diferente. O programa Personalidades apresenta, na íntegra, a coleção de filmes domésticos do médico neurologista, considerado o criador da psicanálise, e reúne momentos raros e descontraídos do psicanalista com a família e amigos ilustres, entre 1928 e 1939, seus últimos 11 anos de vida. Alguns filmes foram feitos pela psicanalista Maria Bonaparte, uma das grandes responsáveis pela disseminação da psicanálise na França, tendo ajudado Freud a deixar a Áustria, após a anexação do país pela Alemanha nazista.

 

A coleta e a pesquisa sobre filmes domésticos se intensificou na última década, e estes materiais podem ser encontrados em instituições e arquivos audiovisuais diversos, além de coleções particulares e projetos independentes. Os Estados Unidos talvez seja um dos países que mais concentra arquivos e iniciativas direcionadas ao universo doméstico. O programa Arquivos em foco será dedicado ao acervo das instituições norte-americanas e aos registros de famílias afro-americanas. 

 

Além da programação de filmes, teremos dois debates, o primeiro com Débora Butruce, sobre o desafio de fazer a curadoria em um universo tão heterogêneo e vasto como o dos filmes domésticos, e o segundo com Lila Foster e Thais Blank, pesquisadoras especializadas no formato, a fim de apresentar ao público questões históricas e estéticas que envolvem essas obras.

 

Em um momento como o atual, em que vivemos assolados cotidianamente por uma quantidade vertiginosa de imagens pessoais, ainda é possível nos sensibilizarmos diante de tamanha profusão? Cremos que sim, e uma das apostas da Mostra Internacional de Filmes Domésticos é oferecer um olhar a partir de outros contextos, quando a relação com a tecnologia de registro era outra, e possibilitar, talvez, novas conexões. Ao nos depararmos com a materialidade e a particularidade estética dessas imagens, cheias de imperfeições e vestígios, também pretendemos discutir sobre a importância de sua preservação e difusão e ressaltar a potência da beleza dissonante desses filmes.  

 

Débora Butruce é idealizadora e curadora da Mostra Internacional de Filmes Domésticos. 



 

A mostra